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O incorformismo de Carlos Vergara

  • Foto do escritor: Flávia Tronca
    Flávia Tronca
  • 1 de out.
  • 8 min de leitura

A abordagem crítica e o processo criativo


Carlos Vergara

Quando se fala em abordar criticamente obras de arte, deparamo-nos com algumas limitações inevitáveis, pois será sempre um olhar “de fora” ao acontecimento. O que afirmamos se alicerça pelos caminhos das conjecturas e incertezas. Não estaremos no cerne do processo de criação, pois não participamos da aventura criativa do artista. A abordagem chega mediante variados recursos auxiliares, tais como relatos de personagens que compõem o mundo da arte e do artista, dados históricos e bibliográficos, textos e informações diversas sobre as obras, fotografias, entrevistas, visitas aos ateliês, filmes e tantas outras ferramentas de acesso que acompanham o trabalho do artista, sabendo que são apenas possibilidades de conexões que nos apoiam nessa tarefa.


Sendo assim, temos consciência de que não temos acesso direto ao processo criativo propriamente dito. Porém, esses registros podem ser considerados, na sua forma física, o meio através do qual o fenômeno se manifesta. O processo criativo do artista não pode ser capturado, mas alguns indícios desta aventura sim, como os vestígios e os testemunhos de uma criação em processo.


Pintura de Carlos Vergara
Fonte: @ateliecarlosvergara

O Garimpo dos acontecimentos


O relato da vida de Carlos Vergara, considerando os mais de cinquenta anos de atividade no circuito das artes visuais brasileira, revela-se extremamente relevante, pois a sua trajetória toma dimensão social ao se entrelaçar com a vida, eventos e pessoas que tecem um tempo histórico e singular.


Fonte: @ateliecarlosvergara
Fonte: @ateliecarlosvergara

Natural de Santa Maria – RS deixou logo cedo a sua terra natal, mas as lembranças transmitidas pelos seus pais, sobre a vida no Rio Grande do Sul, ressurgem aqui e ali, em meio às memórias e conversas sobre as histórias da sua família, sua vida quando criança, sobre a sua arte e vivência com Iberê Camargo, artista que esteve no alicerce da sua formação, lá nos idos dos anos 1960, entre tantos outros artistas.


Vergara diz que, quando retorna à sua terra de nascimento, vê-se mergulhado em lugares que o fazem rememorar momentos de sua vida. É nesse contexto que é possível perceber a importância que Iberê Camargo exerceu sobre a sua formação como artista.


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A experiência musical proporcionada pelo pai, que era pároco no ano de 1939, em Santa Maria, a vivência escolar e a formação como químico, contribuíram decisivamente para que atingisse a dimensão contemporânea da sua pintura. Vergara é um artista que veio da plateia. Veio da música. Quando pequeno, a música religiosa o absorveu inevitavelmente, por ser filho de um reverendo. A música era constante e inevitável! O trânsito no universo abstrato com sinfonias de Bach e Handel, por exemplo, transportou o artista para diversas outras experiências estéticas e, consequentemente, a sua habilidade manual foi o que o levou às artes visuais.


Quando criança, a sua atividade como desenhista foi para fugir da solidão. Morava logo atrás da igreja, na casa paroquial. Vergara e seu irmão mais velho desenhavam ao olhar para as nuvens, nos intervalos dos estudos. A família mudou para o Rio de Janeiro quando Vergara estava com quatorze anos e como moravam perto do Flamengo Futebol Clube, acabou desenvolvendo as suas habilidades esportivas, primeiro com o basquete e logo em seguida com o vôlei.


Influências


Vale destacar que a arte de Iberê Camargo é de intensa originalidade, influenciando a carreira de muitos outros artistas, que em meados da década de 1960 iniciavam o aprendizado. Carlos Vergara foi um desses artistas. Uma relação intensa de amizade entre mestre e aprendiz, provindos de regiões muito próximas, do centro do Estado do Rio Grande do Sul.


No Rio de Janeiro existia uma galeria que se chamava Relevo. Quem trabalhava lá era Tereza de Lima, filha do poeta Jorge de Lima, que conhecia diversos artistas, entre eles Iberê. Ela também conhecia os desenhos de Vergara, além das joias que desenhava e alguns poemas que escrevia.


Vergara estava insatisfeito com seu trabalho de artesão de joias, pois sentia que tudo aquilo acabava não passando de elemento decorativo, sem vida própria, apesar das características artísticas. Então, Tereza o apresentou a Iberê, que disse para levar os seus desenhos. Imediatamente Vergara partiu com um calhamaço de desenhos embaixo do braço para mostrar ao mestre, que lhe disse: “Vem pra cá, para o meu ateliê. Vem trabalhar comigo”.


E. di Cavalcanti - 1955                                                                    Fonte: aartemoderna.blogspot.com
E. di Cavalcanti - 1955 Fonte: aartemoderna.blogspot.com

No começo da década de 1960 começaram a surgir algumas das primeiras Galerias de Arte cariocas: Bonino, Petite Galerie e Relevo. Surgiram quase que ao mesmo tempo, e coincidência ou não, ficavam todas em Copacabana.


Esse período refere-se ao início da década de 1960, quando Vergara é selecionado para a VII Bienal Internacional de São Paulo, com a feitoria de joias. Todavia, seu interesse pelas artes visuais já era maior. Chegou a pensar na escultura, apesar da sua formação em desenho, porém, foi quando conheceu Iberê Camargo, por volta de 1962.



Nasce uma grande amizade


Alguns fatos curiosos aconteciam no ateliê, como o pedido de Iberê para que Vergara desenhasse uma infinidade de caramujos, enquanto ficava observando atentamente. Entre as suas tarefas no ateliê, Vergara costumava ficar espremendo tubos de tinta para Iberê pintar. Em outros momentos, Iberê rabiscava algumas naturezas mortas para Vergara desenhar e, quando precisava da sua ajuda, chamava: “Espreme aqui ou ali alguma cor”.


Iberê observa o painel da Organização Mundial da Saúde em processo de produção - Fonte: Fundação Iberê Camargo
Iberê observa o painel da Organização Mundial da Saúde em processo de produção - Fonte: Fundação Iberê Camargo

Vergara tinha uns vinte e dois anos e jogava voleibol profissionalmente. Iberê não gostava nada dessa atividade paralela, porque chegava seis e meia da tarde e o aprendiz já dizia que tinha que ir embora por causa do treino. Iberê ficava muito aborrecido e argumentava: “Ou tu és artista, ou esportista”. Foi nesse impasse que nasceu uma grande amizade.


Vergara conta que, às vezes, Iberê ficava aborrecido com detalhes mínimos na realização de suas obras. Diz que o mestre gastava muita tinta, camadas e camadas, mas acabava não gostando do resultado. Vergara tentava convencê-lo que a obra já estava pronta, mas nada adiantava. Iberê desfazia tudo. Certamente uma convivência muito intensa.


Iberê observa o painel da Organização Mundial da Saúde em processo de produção - Fonte: Fundação Iberê Camargo
Iberê observa o painel da Organização Mundial da Saúde em processo de produção - Fonte: Fundação Iberê Camargo

Vergara nunca fez uma aula formal com Iberê, apesar de ter aprendido muito sobre rigidez e algumas técnicas de pintura, acreditando que o grande trabalho é colocar questões novas em suas obras. Certamente o convívio de dois anos com Iberê Camargo, que mais tarde se tornara o seu mestre, influenciou o seu trabalho como artista, direcionando-o para um viés expressionista, incorporando ícones especificamente urbanos, tornando clara a intensão em abordar o homem e suas relações com o mundo.


"Desdobramento", óleo sobre tela feito por Iberê Camargo em 1978, parte da Coleção Maria Coussirat Camargo                                                                                                   (Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre). Foto: Doris Sochaczewski/Divulgação
"Desdobramento", óleo sobre tela feito por Iberê Camargo em 1978, parte da Coleção Maria Coussirat Camargo (Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre). Foto: Doris Sochaczewski/Divulgação

Quando da exposição Opinião 65, o trabalho de Vergara já tinha ganhado um caráter mais definido e político. Iberê era contrário a isso, pois incorporava em suas obras coisas da visualidade geral. Foi nesse ponto que Vergara seguiu a sua própria vida. Uns quinze anos depois, sem ter mais contato com Iberê, Vergara voltou a Porto Alegre para fazer uma exposição na Casa de Cultura Mário Quintana, no centro da cidade. Vergara queria muito a presença de Iberê, que aceitou o convite. Viram tudo juntos abraçados, sendo um reencontro muito emocionante.


Casa de Cultura Mario Quintana, localizada no Centro Histórico de Porto Alegre.                                                                                                                                                                               Fonte: Acervo da Secretaria da Cultura do Estado do Rio Grande do Sul
Casa de Cultura Mario Quintana, localizada no Centro Histórico de Porto Alegre. Fonte: Acervo da Secretaria da Cultura do Estado do Rio Grande do Sul

Iberê sempre foi rigoroso em relação ao critério das escolhas. Ao logo do processo de realização da obra existem muitos impasses a serem resolvidos e um deles é a decisão de quando a obra estará pronta. Iberê acreditava que as referências externas precisavam ser administradas cuidadosamente, para que a individualidade ou identidade do artista estivesse sempre presente e que, ao mesmo tempo, ela conversasse com o universo estético do mundo. Por isso, quando Vergara trabalhava no ateliê de Iberê o mestre insistia para que Vergara refizesse inúmeras vezes os seus desenhos. Um processo árduo e intenso numa relação entre mestre e aprendiz. Esse tempo foi fundamental para que Vergara entendesse o significado da superação.


Influências


Outra influência na formação do artista Carlos Vergara é a de Hélio Oticica, uma amigo e companheiro de projetos e experiências. Oticica mirava na diversidade brasileira, não de uma forma regionalista ou piegas, mas na busca da identidade verdadeiramente brasileira.



Carlos Vergara já estava com cerca de trinta anos no início da década de 1970 e a realização das suas obras já alcançava reconhecimento internacional. Outros como Antonio Dias, Rubens Gerchman, Pedro Escosteguy, Roberto Magalhães, Waltercio Caldas também alcançavam tal reconhecimento. Antes disso, voltando o tempo para a década de 1960, agiam em conformidade, porém, com as suas diferenças. O que os unia era intervir sobre aspectos da realidade social.


A pintura foi, para Carlos Vergara, uma forma de pensar, uma espécie de performance no mundo, satisfatória até certo tempo. Experiências com plasticidade, entretanto, que não ditam verdades, remetendo sempre para os sentidos inesgotáveis que possam sustentar. No seu percurso de vida, Vergara reinterpreta experiências de formas diferentes, retomando-as sempre com um novo olhar. A memória é por ele utilizada como um revigorante que faz ver os acontecimentos a partir de diversos olhares.


Fonte: @ateliecarlosvergara
Fonte: @ateliecarlosvergara

Vergara e Antônio Dias


A presença de Antonio Dias também foi marcante na formação de Vergara, apesar das disparidades existente entre eles, que o estimularam nas reflexões para além das posturas adotadas por seus pares de geração.



Vergara tinha ressalvas pela atitude de Dias seguir com sua produção fora do país, o que aconteceu lá por volta de 1966. Além disso, o caráter conceitual também o intrigava, distante em certa medida da situação vivida aqui no Brasil. O profissionalismo europeu de Dias era evidente e as oportunidade que encontrara em outros lugares chancelava a ideia da linguagem artística existir em qualquer lugar, independente da nacionalidade. As indignações de Vergara vieram à tona materializando o “brasileirismo” evidente nos seus trabalhos, acreditando na realização de uma arte produzida no Brasil, ideia não compactuada por Antonio Dias na época reportada.


Vergara, assim como Frans Kracjberg, tem atenção especial às cores da terra. O mesmo aconteceu com Antonio Dias, em experiência no Nepal. O interesse pelos pigmentos naturais retirados da terra estava presente nos processos artísticos de Dias e também de Vergara. Foi Dias que introduziu Vergara aos segredos das terras pigmentadas de Minas, mostrando a ele, no próprio local, onde podiam ser encontrados tais pigmentos. O convívio com artistas mais experientes levou Vergara a alcançar, de modo complexo e único, os caminhos da sua criação.


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Certa vez o escultor Sergio Camargo indagou Vergara: “Para quem você faz a sua arte”? Vergara respondeu: “Para o mundo”. Camargo retrucou afirmando que primeiro fazia para ele próprio, depois para os seus pares e, por último, para o mundo. Fazer para o mundo o retirava da mira da crítica e o deixava mais confortável. Porém, se você produzir para si mesmo, você irá se deparar com a sua verdade e com o crítico mais implacável: você mesmo.


Carlos Vergara
Carlos Vergara

Vergara sempre se preocupou em realizar a sua arte para surpreender a si e também as outras pessoas. Nesse vaivém entre os outros e a si mesmo, o trabalho de arte se materializa como a expressão de um pensamento.



O outro agora se torna o próprio Vergara


Rememorações possíveis de serem alcançadas somente pelo próprio artista. O outro se torna ele mesmo. Carlos Vergara mantém vivo o seu inconformismo claramente visto em não aceitar à solenização do objeto de arte e o processo tradicional de criação artística. Talvez seja por isso que ele se volta para as circunstâncias cotidianas, para as suas vivências e memórias, para a escolha de materiais corriqueiros, os pigmentos e os elementos da terra, que constituem a essência da vida nas grandes cidades.



Flávia Zambon Tronca

2 comentários


mabialandim
09 de out.

Como é complexo o processo de criação e afirmação da identidade de um artista!

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Flávia Tronca
Flávia Tronca
14 de out.
Respondendo a

A arte não precisa decifrar tudo e o processo criativo é particular e se faz com dedicação e tempo disponível - é exatamente nesse enigma que reside a sua força.

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