O Flaneur
- Flávia Tronca
- 26 de nov.
- 4 min de leitura

A história da cidade de Paris é um dos poucos lugares na trajetória da humanidade sobre as quais possuímos um conhecimento tão vasto. Milhares e dezenas de milhares de volumes foram dedicados exclusivamente à pesquisa desse pequeno lugar na Terra.

Imaginar a construção topográfica da cidade de Paris repetidas vezes, a partir de suas passagens, portões, cemitérios, bordéis e estações, é como reviver seu passado, semelhante à sua constituição anterior por igrejas e mercados. Os aspectos mais secretos e guardados profundamente, como assassinatos, rebeliões, cruzamentos sangrentos nas ruas, locais de amor e incêndios, poderiam ser condensados em um filme envolvente a partir do mapa de Paris. Poderia-se criar um desfecho cinematográfico instigante explorando o desenvolvimento cronológico de suas diferentes configurações ao longo dos séculos. E quem é o flâneur nesse contexto?

Paris erguia-se sobre um emaranhado de cavernas. Sob os pés dos parisienses, um segundo, o mundo se agitava, onde os sons do metrô e dos trens se transformavam em ruídos que difundiam-se através das antigas abóbadas de calcário. Era um local onde a história encontrava-se com a modernidade, e as ruas movimentadas se fundiam a galerias escuras que existiam há séculos.

O flâneur é um arquétipo que não surgiu em Roma, mas sim na Paris do século XIX, à medida que a cidade se transformava em uma metrópole moderna. O termo "fâneur", derivado do substantivo francês "flâneur", significa "errante", "vadio""caminhante" ou "observador". A "flânerie" refere-se ao ato de passear. O flâneur é em grande parte sinônimo de "boulevardier". Essa figura era essencial para qualquer representação das ruas de Paris no século XIX, na França. Foi Walter Benjamin, inspirado na poesia de Charles Baudelaire, que elevou essa figura a um objeto de estudo acadêmico no século XX, tornando-a um arquétipo emblemático da experiência moderna. Charles Baudelaire descreveu esse personagem urbano como um "espectador apaixonado" que "mergulha na multidão como se fosse um vasto reservatório de energia elétrica".
O flâneur não poderia existir sem o contexto do século XIX em Paris. Ele se alimentava da cidade não apenas do que encontrava em seu caminho, mas muitas vezes do simples conhecimento, dos acontecimentos e até mesmo das experiências vividas. Com o movimento nas ruas cada vez mais agitado a cidade se movimentava continuamente e a oportunidade de conversar tranquilamente nos cafés sem ser perturbado pelo barulho ao redor só era possível graças à pavimentação das ruas; um processo que envolve a aplicação de camadas sucessivas de pedras trituradas e compactadas para criar uma superfície resistente, conhecido como macadamização. Esse método histórico foi precursor das modernas técnicas de pavimentação asfaltica.

Paris era o verdadeiro santuário do flâneur. Ele se sentia observado por todos, tanto o suspeito legítimo quanto o totalmente inatingível, escondido. Essa é a dialética da fânerie. Para esses indivíduos, as placas das lojas são apenas decorações de parede. Os quiosques de jornais são suas bibliotecas; os bancos das praças, seu mobiliário; o terraço do café, sua varanda; a grade onde os trabalhadores lapidam as pedras das ruas é como um closet; o portão que leva dos pátios às áreas públicas é como um longo corredor e as passagens são como salões com um interior mobiliado e ocupado pelas massas.

Os pontos principais da cidade eram as suas praças, nas quais não apenas acontece o encontro de muitas ruas, de modo radial, como também a sua história. O flâneur transformou Paris em seu próprio lar. Mesmo estando longe de casa, ele se sentia em casa, sem um endereço fixo, presente em todos os lugares e em nenhum ao mesmo tempo. No epicentro do mundo, permanecia oculto dele. Essa era a verdadeira satisfação desses espíritos independentes e apaixonados, desfrutando anonimamente em todos os lugares.
Se o flâneur saísse para um passeio em um dia agradável, era fácil encontrá-lo explorando galerias de arte, confeitarias ou chapelarias, lugares para observar se havia pessoas e quem eram elas. O flâneur era um observador perspicaz, um colecionador habilidoso de informações, e para ele, a ociosidade era um protesto contra a divisão do trabalho. O flâneur é o mestre da conexão entre a mercadoria e seu valor de troca. Ele explora o conceito de venalidade, a qualidade ou característica de algo suscetível à venda ou compra.

Ele tinha um entendimento quase sobrenatural do comportamento humano, como se pudesse desvendar as almas dos que cruzavam seu caminho. As expressões faciais se tornavam janelas para os pensamentos mais secretos, enquanto ele estudava cada sutil mudança no semblante das pessoas. O modo como caminhavam, sua constituição física, a essência de seu caráter, a nacionalidade que carregavam e até os desígnios do destino.

Era uma dança de observações minuciosas, onde cada passo, cada gesto, revelava verdades ocultas. Fascinante, não? A figura do detetive, esculpida pelo flâneur, ascendia como um espectro nas ruas, conferindo uma estranha legitimidade social a sua busca incessante por respostas. Mas quem, em meio a essa complexidade, perceberia o que realmente se escondia sob a superfície? A cada feição desvendada, um novo mistério se formava, fazendo o suspense pairar no ar. Ele estava a um passo de descobrir segredos que poderiam mudar o curso de vidas inteiras.

Flávia Zambon Tronca



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